Arquivo do dia: 16 de junho de 2015

Vagabundas: o que todas temos em comum.


*por Nathália Diórgenes

Este texto é sobre mim. E sobre todas. Até porque, irremediavelmente, o pessoal é político. E político é também aquilo que é corriqueiro, do dia-a-dia esmagado pela naturalização dos fatos. O político também está naquilo que ‘ninguém pensa sobre’, apenas repete, sem pestanejar.

Mas, era uma vez aquele boy de esquerda.

O “companheiro” defende tudo o que você defende: financiamento público de campanha, legalização do aborto, a criminalização da homofobia, a redistribuição da riqueza socialmente produzida, ‘abaixo o capital!’. E você se “apaixona”. Não é difícil com tantas coisas incomuns. Porém, parodiando Cecília Toledo, ‘a classe nos une, o gênero nos divide’.

Eis que um dia, em uma conversa despretensiosa, ele lança ao vento: ‘mas tem muita mulher vagabunda por aí’. Você lê três vezes pra ter certeza de que entendeu. Afinal, ele jamais falaria isso. E muito menos pra uma feminista. Ledo engano. E quando foi contestado, responde: “meninas que namoram e são casadas me chamando pra ir pra um motel hoje, não tenho outro adjetivo. Sorry”. Senti-me diretamente afetada. Elas são vagabundas por fazerem o que querem de sua vida sexual. Portanto, eu também sou. Somos todas. A conversa se estendeu, mas vamos aos fatos: o termo vagabunda é doce na boca dos homens (de esquerda).

‘Vagabunda’ não é um mero detalhe dentro da lógica da opressão das mulheres, vulgo patriarcado. Ademais, a linguagem tem uma memória histórica que marca o nosso tecido social. Os termos vagabunda, vadia, puta são significados em uma construção lingüística muito clara de cravar nas mulheres transgressoras (que vivem suas sexualidades como bem entendem) sentidos de imoralidades, de pecados e domesticá-los à uma posição de inferioridade e de desvalor, em uma engrenagem extremamente inteligente de dominação e subordinação. A linguagem é discurso. E discurso é poder. E o patriarcado sabe disso.

Na mesma hora, lembrei das inúmeras “justificativas” dos assassinatos de mulheres por seus próprios “companheiros”: ‘ela me traía, era uma vagabunda’. Eu lembrei de Maristela Justi, Eliza Samudio e tantas outras ‘sem nome’.

Lembrei que a maioria dos brasileiros pensa que se as mulheres ‘se dessem ao respeito’ haveria menos estupros. A maioria dos cidadãos de bem perguntam logo o que as mulheres estavam fazendo e que roupas elas estavam usando no momento em que foram estupradas. Só sabe o peso social da palavra vagabunda quem assim já foi chamada. Só sabe o peso da palavra vagabunda quem tem sua sexualidade cerceada todos os dias. Só sabe o peso da palavra vagabunda quem levou uma surra porque não “se deu ao respeito”.

Lembrei que Maria do Rosário foi chamada de vagabunda por Jair Bolsonaro em pleno Congresso Nacional. “Você é uma vagabunda que merece ser estuprada”. Atacar a sexualidade de uma mulher que está na política é um artifício para atacar o próprio direito dela e de todas as mulheres de estarem na política. Esperávamos no mínimo uma cassação do mandato do deputado. Como vivemos no patriarcado, nada aconteceu.

E o pior é que os machistas de esquerda não têm vergonha de enquadrar suas palavras em discursos fascistas, como o de Bolsonaro, por exemplo. Afinal, nada mais parecido com um machista de direita do que um machista de esquerda.

Por fim, lembrei das inúmeras vezes em que caminhei na rua e fui assediada, e quando revidei fui xingada de vagabunda. Lembrei que fui me constituindo como sujeito político e tive a construção da minha feminilidade marcada através desse termo. Lembrei de 2007, quando meu namorado me xingou de vagabunda por estar em uma ocupação política. Lembrei de brigas com outros namorados que com o dedo em riste na minha cara bradaram: “esse relacionamento está acabando porque você é uma vagabunda!”.

Caro companheiro, você também alimenta essa merda toda que chamamos de patriarcado.

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Nathália Diórgenes

Sobre mim:

Há três momentos que me constituíram na vida: quando eu li o Manifesto do Partido Comunista, aos 14 anos; quando eu conheci o feminismo, aos 19 anos; e quando eu conheci o feminismo negro, aos 24 anos.

Esses três momentos construíram uma pessoa adepta ao conflito, ao drama e à luta. O feminismo está cravado em mim e se alguém tirar eu desabo. É alicerce.

Recifense que tem medo de tubarão, assistente social de esquerda e gestora pública. Dediquei a minha formação acadêmica aos estudos de gênero e feministas. E agora dedico o meu tempo para formular políticas públicas para as mulheres.

Categorias: Sociedade & Política | 3 Comentários

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