XIAO mulher*. 8M, 2018


Em chinês, “Xiao”, anteposto a um sobrenome, significa “jovem” (As boas mulheres da China. Xinran. 2002)

Ciranda 8M_ Carolina Pildain Comunicación Integral

Ato de 8 de março de 2018, Rio de Janeiro (Fonte: Carolina Pildain Comunicación Integral)

                

                Mais que a dor física, ficou-me dessa primeira entrega uma sensação de medo e secreta humilhação; aquele gozo, que ele tirava de mim, era tão só dele, tão separado de mim, diminuía-me tanto! Eu não ressentia nada do misterioso prazer cuja aproximação o fizera arquejar como se sofresse, e depois o deixara sonolento e quieto, atirado na areia, numa espécie de inconsciência feliz (…)

                Eu estava lúcida, lúcida e magoada, e extraordinariamente triste e medrosa. Queria que ele me consolasse, me abraçasse, me compensasse de tudo. Porém Isaac, na sua sonolência, deixava-me estar sozinha, e parecia que minha função terminara ali – pelo menos até que o seu desejo renascesse.

                                                                            (As Três Marias. Rachel de Queiroz. 1939. p.134)

É madrugada do dia 7 para o 8 de março e eu me coloco a escrever este texto, logo após pensar em algo a enviar para as mulheres que, até então, têm sido minha fonte de energia para resistir às circunstâncias. No meio de um emaranhado de pensamentos e de palavras soltas que surgem na minha mente enquanto reflito sobre minha trajetória de mulher até esses meus recém-completos 20 anos, duas palavras piscam em minha cabeça e são completamente capazes de resumir esse processo: sororidade e empatia.

Mas, antes de eu chegar ao que seriam minhas resoluções de jovem adulta ou de idosa adolescente, eu preciso falar sobre transição. Essa palavra tem um sentido tão imenso que, dentro da minha escassez de ideias para explicá-la, darei o meu melhor para ter êxito.

Transição é algo intrínseco ao “ser mulher”

Eu sempre me considerei muito precoce, dona de mim, conhecedora do mundo e cada vez mais o tempo passa e eu tenho certeza de que sei menos. Isso é ser mulher na sociedade em que vivemos. É estar sempre cercada pelos mais diversos aparatos de segurança que montamos entorno de nós mesmas, para que nosso ar de seriedade nos defenda de termos nossos corpos e intimidades invadidos por seres que nos veem como objetos a serviço sexual.

Posso dizer que meus anos escolares forneceram uma boa base para eu sentir o que me aguardava mais à frente. Os olhares de homens mais velhos desde o início da puberdade, que em um primeiro momento não entendemos, mas que, depois, nos causam insegurança e fazem com que os conselhos mais repletos de boas intenções (e frutos de experiências já vividas) das mulheres da família comecem a fazer sentido. Também é nessa época que professores começam com seus comentários machistas, tanto sobre alunas, quanto sobre outras professoras, sobre os quais só hoje eu tenho a capacidade de discernir.

Mas aí chega a Universidade. Esse espaço que acreditamos ser o sinônimo da liberdade e de tudo de bom que a vida tem a nos oferecer. Em parte, isso é verdade. Em parte, não: afinal, somos mulheres. E aí fica mais difícil, já que o assédio toma novas formas e sutilezas, até então desconhecidas. Eu, mera graduanda, ao sofrer assédio, não sei se me sentiria capaz de abrir um processo administrativo contra aquele que é o professor mais querido do curso, com doutorado internacional, e correr o risco de ter minha carreira manchada por ele e por seus colegas de profissão. Além disso, quem seria eu para achar que estou no direito de destruir a vida de alguém por mera paquera que “só foi uma gentileza”. Eu deveria estar honrada por um homem tão interessante olhar para mim, me achar “diferente” das outras e tão madura para a minha idade, e deixar de bancar a louca (ALERTA 1: essa é a tática mais usada de todas) (ALERTA 2: Se esse é o seu caso, entre em contato com o Núcleo de mulheres do seu curso ou com alguma mulher em que confie. Assédio é crime).

Gráfico

DADOS: INSTITUTO AVON E DATA POPULAR (FOTO: REVISTA GALILEU / FEU) (Agressão moral, assédio sexual, coerção, desqualificação intelectual e violência sexual são os tipos de violência mais comuns sofridos por mulheres na Universidade. Leia mais sobre em https://revistagalileu.globo.com/Sociedade/noticia/2016/02/rompendo-o-silencio-vitimas-de-violencia-nas-universidades-brasileiras-contam-suas-experiencias.html)

 

O paradoxo é que também foi nesse espaço em que tive a honra de ser abraçada por mulheres, que compartilharam comigo suas inseguranças e que me fizeram perceber que a competitividade que desde cedo plantam em nós nada mais é do que estratégia do patriarcado para que não percebamos que, juntas, somos mais fortes.

É aí que começo a entender a essência da empatia e inicio o exercício de uma sororidade sincera.

Além de formação acadêmica, a graduação também vira uma espécie de intensivão da vida. Tudo aquilo com que antes eu não tive contato eu começo a enxergar; e, então, preciso decidir se escolherei me impor ou me estabelecer como omissa frente a essas problemáticas. Foi nesse espaço que aprendi sobre privilégio branco, sobre transfeminismo e onde, pela primeira vez na vida, vi mulheres negras falando em primeira pessoa (obrigada, Giovana Xavier).

Esse afeto que aprendi a construir veio das mais diversas e inesperadas fontes. Uma das (poucas) resoluções certas que tenho até aqui é da importância de conversar com outras mulheres, de ouvir seus medos, suas histórias de luta e identificar nelas as minhas próprias inseguranças e medos, para que, juntas, possamos traçar estratégias de resistência. Também foi de extrema importância ouvir de diferentes mulheres as opressões que as atacam, já que vivemos em um país fundamentalmente racista, onde muitas ainda lidam com a soma de sexualização do corpo negro à misoginia estrutural – isso, sem falar em lesbo-trans-bi-fobias.

Ato 2

Outra resolução de coisas boas que agreguei no vigésimo 8 de março foi um hábito que tem me ajudado imensamente: me engajar em leituras cuja história seja narrada por personagens femininas. Nós precisamos de heroínas, de mulheres com as mesmas fraquezas que nós, que escrevem e nos fazem lê-las de dentro para fora.

Um dos últimos livros que li contava sobre a realidade de mulheres chinesas durante a Revolução Cultural e as opressões que sofriam, tanto no âmbito doméstico, quanto por parte do Estado. Foi assustador perceber que as histórias contadas por chinesas que viveram suas adolescências e vidas adultas entre 1950 e meados de 1970 poderiam, perfeitamente, se encaixar na realidade de mulheres brasileiras de 2018.

Em “As boas mulheres da China”, a primeira história narrada é a de Hongxue, uma adolescente que, desde a infância, é abusada por seu pai e que encontrou no hospital um refúgio para essas agressões. Desde então, ela fazia de tudo para ter seu quadro agravado e prolongar sua estadia no leito. Mas, o ponto principal da história é o afeto.

Um dia, deitada com seus olhos fechados, Hongxue sente

como se um par de mãos minúsculas me acariciasse suavemente. Eu me senti muito grata àquele par de mãozinhas e quis saber de quem eram. Abri os olhos e vi:

Era uma mosca

Essa foi a única sensação de carinho que ela recebeu em sua curta vida e, mesmo assim, a importância desses segundos foram cruciais para ela. Fico pensando o que teria se tornado Hongxue se ela tivesse tido o privilégio que eu tenho de viver em um círculo de afeto de mulheres em que confio e que tornam mais leve a caminhada até a plenitude.

Enquanto ela e as outras mulheres tinham suas histórias contadas no livro, eu conseguia sentir cada dor, arrepio, suspiro de alívio. Eu as lia, mas, ao mesmo tempo, era como se eu me visse nessas histórias contadas por elas, ou visse mulheres próximas que me contaram algo parecido. Isso é empatia. O carinho que senti por Hongxue, apesar das décadas que nos separam (e diante das semelhanças que nos unem), é sororidade.

Ato 1

Chegando perto deste 8 de março, li muito que essa data e a luta que temos travado até então fazem parte de uma revolução sexual. Mas eu vejo mais como uma revolução de corpo: estamos revendo a forma como nos enxergamos e o significado que atrelamos às nossas curvas, cores, sexualidades e, também, ao nosso papel na sociedade. É uma consciência que estamos adquirindo e que vejo como resultado de um cansaço coletivo desse papel de subalternidade, de serviço e de humilhação ao qual somos sujeitadas. Trata-se, portanto, de uma revolução por autonomia, sobre nossos corpos e sobre nós mesmas.

Pra esse 8M, eu só desejo que sejamos nossas, nossas, e de mais ninguém. Abrace uma mulher, converse com ela, não tenha receio de se expor a ela. Encontre nela a fortaleza que você precisa; será recíproco. Vejamos nossas mães e, encarando diferenças, distâncias (terrestres ou espirituais), sintamos por elas a mesma empatia que gostamos que sintam por nós, pois é através delas que tudo começa (independente de como seja).

É assim que eu espero continuar me tornando mulher: me (re)descobrindo, descontruindo e construindo, em um processo que levará uma vida inteira e que será uma longa caminhada (em que pelo menos a boa companhia estará garantida).

Tour Pelo Meu Rosto | Papo DePretas por Gabi Oliveira


 

Bruna Bio

Convidada: Bruna Bauer

Mulher latina e feminista em busca da interseccionalidade. Faço parte do Núcleo de Mulheres Maria Beatriz Nascimento e paradoxalmente estudo Segurança no Fundão. Pesquiso feminismo(s) na tentativa de dar voz às mulheres do sul global. Meu sonho de criança era ser poliglota e o mantenho até hoje, mas por enquanto me contento em ser super poliglota em cumprimentos aleatórios  e saber escrever “feminismo” em umas oito línguas. Amo Maria Bethânia e Alcione.

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Ser independente; ser legítima, ser relevante: três atos de um monólogo feminino


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Um dos meus maiores aprendizados nos últimos anos foi passar a ver os fenômenos de forma holística. Deixar de ver fatos e atos de modo fragmentado para passar a enxergá-los como parte de um sistema. Seja a existência dos seres sencientes, seja o racismo, seja a crise econômica: não são partes; são, ao contrário, continuidades, teias, associações que se reforçam reciprocamente. Começar a compreender o patriarcado também dessa maneira vem sendo fundamental para acatar minhas angústias como menos individuais e mais coletivas. Para vislumbrar causas e consequências; e, não, meras casualidades entre expressões do sexismo que parecem sementes acidentais.

Faz uns meses que li uma matéria sobre autoestima e confiança femininas; há poucos dias tive contato com um texto sobre casamento como êxito e completude; ontem me peguei refletindo sobre ter de convencer os outros sobre a própria relevância enquanto mulher. E comecei a elaborar que talvez não sejam fenômenos aleatórios e indissociados. Capaz que, como versou Raulzito, sejam o início, o fim e o meio.



Primeiro ato – tornar-se uma mulher independente.

Embora independência seja uma meta desejável e benéfica para qualquer uma/um, assumo, certamente, que aqui falo como mulher branca de classe média, para quem a libertação por meio do estudo é o maior dos êxitos. Pois bem: cresci com pais que me mandavam estudar muito, ser a melhor aluna, ao mesmo tempo em que a avó orientava a não me casar, enquanto me concedia a bença. Alfabetizar-se aos 4 anos; ler todos os livros da biblioteca da escola primária; aprender Francês com 11 anos; ganhar concurso pra congresso nos Estados Unidos; passar pra todas as universidades; estudar pra carreira diplomática – cartilha cumprida com estrelinha de honra ao mérito. Neste ponto, não me queixo – até pelo privilégio de poder ter realizado tudo isso. Mas vejamos o quanto de similitude há em vidas de mulheres que, desde o nascimento, se dedicam ao aprendizado acadêmico e, por conseguinte, ao melhor posicionamento possível no mercado de trabalho.

O que, então, acontece? Simplificando, como vovó Didi, um bando de mulheres “que só têm tempo pra namorar os livros”. Isso é ruim de per si? Não. As pessoas aceitam a sua opção ou a inevitabilidade desse resultado, diante do conselho dado na infância pra “não namorar, só estudar”? Também não. De modo que a mulher que tem em torno de 30 anos, pena com os inconvenientes interrogatórios familiares sobre estar (ou não) namorando, querer (ou não) casar. Descobrimos assim, como que por acidente, que ser independente não era exatamente o melhor futuro para uma mulher. Não é só: é preciso ser complementada por um homem, por um amor romântico, por um casamento estável, pela maternidade. Ué, não era pra estudar muito pra ser independente e não “precisar” de homem, só se desejá-lo? Ah, de repente toda uma geração de mulheres entendeu errado….

Então tá certo, vamos reconfigurar isso: mulheres com alto nível cultural e profissional decidem procurar parceiros, agora que já têm 30 e poucos anos e podem namorar. Qual o resultado? Mariona Guiu e Ariadna Relea, duas cineastas barcelonetas dessa geração fim dos 70/início dos 80, resolveram investigar o estigma da solteirice e produziram o documentário Singled Out, que fala das inquietações dessas mulheres, independentes e exitosas, que por não estarem namorando ou casadas costumam ser vistas como se padecessem de alguma moléstia. Ariadna explica que quando a mulher deixa de ser dependente, quando o homem deixa de ter o papel de provedor, outro fenômeno é produzido: “Muitas mulheres continuam olhando para cima em busca de um homem, em geral mais velho que elas, com as mesmas inquietações ou nível cultural e social. Mas quando se é uma mulher com certo sucesso no campo profissional e no social, já não há tantos homens disponíveis ao redor, eles se casaram enquanto elas se preparavam para chegar a essa posição. E o homem continuou olhando para baixo durante esse tempo”.

Assim, aparentemente, transmitiu-se uma mensagem dupla e contraditória às mulheres dessa geração – por um lado, isso de ir para a universidade, de ser quem quiser ser, de se preparar para o futuro; por outro, permaneceu a pressão sobre a capacidade de cuidar dos demais, de só estar completa no outro. Afinal durante séculos o papel da mulher vem sendo construído como este: mãe, aglutinadora social, cuidadora, amante, obediente, abnegada. De modo que, sobre a “solteirona”, que não está performando esse papel, parece orbitar a noção de que uma mulher que não tem companheiro não foi escolhida por nenhum homem – porque ela jamais faria esse tipo de escolha para si -, assinalando que algo deve estar errado. E por que não estabelecemos como positivo socialmente que uma mulher decida estar sozinha? Isso, parece, não interessa a ninguém – “O sistema capitalista, com o casal tradicional como um de seus pilares, não sairia muito beneficiado dessa mudança de discurso”, responde Ariadna.



Segundo ato – provar-se uma mulher legítima.

Pois essa mulher que se dedicou toda vida aos estudos e está muito bem, obrigada, aos 30 e tantos resolve romper com esse conceito de que mulher feliz é mulher casada e abraça sua vida acadêmica/profissional. Afinal, depois de tantos anos lendo, estudando, aprendendo língua, escrevendo artigo ela é incrível, segura e está certa de que desempenha seu ofício com maestria e legitimidade. Né? Não: a falta de autoestima e confiança para assumir funções tradicionalmente masculinas, bem como o excesso de pressão e carga de trabalho, costumam acometer essas mulheres exitosas, que passam a questionar a própria legitimidade, percebendo-se como verdadeiras impostoras. Mas o que leva as mulheres a ter essa sensação de não serem operadoras legítimas do seu próprio trabalho?

Segundo Jose A. M. Vela, sociólogo e doutorando em estudos Interdisciplinares de Gênero da Universidade Autônoma de Madrid, “a Síndrome da Impostora corresponde a essa autopercepção pela qual uma pessoa se considera menos qualificada para uma determinada função, cargo ou desempenho que seus companheiros”. Sobre os fatores que influem nisso, o especialista afirma que são cruciais uma baixa autoestima e uma excessiva auto exigência, não se tratando tanto de uma questão individual, mas do reflexo de um problema social. Vela explica que “a socialização diferenciada, pela qual homens e mulheres são educados em papéis e valores distintos cria o caldo de cultura perfeito para que as mulheres sintam de forma maciça a síndrome da impostora”. A consequência disso é que a pessoa que sofre dessa síndrome tentará compensar o que entende como falta de capacidade (não de preparação) com maior esforço e horas de trabalho. Quando o projeto ou trabalho efetivamente têm um bom resultado, no entanto, essas pessoas o atribuem a seu esforço extra e, não, a sua própria capacidade.

A síndrome da impostora não é um fenômeno espontâneo da natureza. Trata-se de uma série de condicionantes que são interiorizados ao longo da vida da mulher. Essa tendência pode ser revelada em dados estatísticos: embora as mulheres concluam o segundo grau com notas melhores do que os homens em Matemática e Ciências, são eles que se dedicam a estudar carreiras em cursos de Exatas. As mulheres acabam seguindo careiras de Humanas, com escassa perspectiva de trabalho, ou de Ciências Médicas, que são carreiras de cuidados. Coral Herrera, doutora em Ciências Humanas e especialista em Gênero e Comunicação, observa que “nossa cultura patriarcal nos ensina que as habilidades femininas não têm tanta importância como as masculinas, por isso há trabalhos de cuidadora, com crianças e serviços domésticos que não são pagos, nem têm valor social, embora sejam imprescindíveis para a sobrevivência”. Por isso, de sua perspectiva, a síndrome da impostora tem muito a ver com essa ideia de que os homens fazem tudo melhor – há estudos que revelam que meninas a partir dos 5 e 6 anos já se percebem como pertencentes a um grupo inferior. Para ela, isso não é visto apenas na escola básica, mas é uma síndrome que “encontramos na pós-graduação, em mulheres que têm doutorados, mas que ainda põem em dúvida sua formação e sua careira porque sentem que lhes falta essa parte que em seus colegas homens nunca vai ser posta em discussão, mas nelas, sim”.



Terceiro ato: afirmar-se uma mulher relevante.

Nem tanto ao céu, nem tanto à terra: caminho do meio. Essa mulher que estudou pra burro, que tá bem na vida profissional, inclusive casou, optou por nem querer ser CEO da empresa nem tampouco ceder à pressão de que é preciso ser mãe pra ser feliz. Ela escolheu ter um companheiro, ter um trabalho legal, mas acha que criança e promoção não são imprescindíveis; que mais lhe vale tempo para se dedicar a estudar com prazer, para aprender um instrumento, para se engajar em alguma atividade social não-remunerada… Essa mulher descobre, no entanto, que há diferentes réguas, conforme o gênero, para o que é considerado um compromisso sério e para o que é disponibilidade desejável.

Na qualidade de mulher – e, novamente, ressalvo recorte de raça e classe feito acima -, há escolhas que fazemos e escolhas que são feitas por nós. Utilizando o meu caso como paradigma dessas mulheres independentes de 30 e poucos, tenho um trabalho estável o que, associado à inexistência de filhos, me permite um bom planejamento do meu tempo. Estou sempre no mesmo endereço, raramente não posso atender o celular, não estou interessada em ter uma carreira de sucesso, porque prefiro me empenhar em outros aprendizados. Ou seja: estou sempre aparentemente disponível. Minhas ausências são escolhas. Eu não me ausento porque trabalho 12 horas ou porque virei a noite cuidando de criança doente – quando estou ausente, é porque estou em aula ou aprendendo alguma coisa. E, como escolhas, essas ausências costumam ser consideradas menos graves ou importantes do que as obrigações.

Há uma certa lógica de oferta e demanda nessa disponibilidade, associada à seriedade. Porque quem tá disponível, certamente deve estar de bobeira. Ou está flanando pela vida. Se você não está se empenhando pra ganhar dinheiro nem cortando um dobrado criando filho, o que de mais relevante você pode estar fazendo? Nada, claro. Um curso, um trabalho voluntário, algo que não produza mais-valia ou ratifique a continuidade da família não deve ter grande importância e nem configurar um compromisso sério. Nada que se apresente como particular, que não derive de obrigação – porque as obrigações foram selecionadas de maneira estável e disponível -, tem como competir com os totens trabalho e família.



Desce o pano

Sobre os amigos homens, observo uma régua um pouco diferente. Parece haver uma certa generosidade com relação aos caminhos escolhidos. Ter um emprego é suficientemente bom; ter uma família ou filhos é atestado de bons antecedentes criminais; se dedicar às artes ou a atividades sociais é visto como prova de sensibilidade. Tudo se soma, nada se subtrai. É tudo lucro.

E, claro: homem de 30 e poucos anos solteiro não é problema nenhum, ao contrário: é detentor dos meios de produção sentimental, decidindo se é melhor ampliar a capacidade instalada ou, até mesmo, fechar a fábrica.

Referências:

https://brasil.elpais.com/brasil/2017/08/25/estilo/1503687111_951873.html

https://brasil.elpais.com/brasil/2017/03/13/estilo/1489414564_421859.html

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Desatando nós: Intelectuais Negras


Olho pro meu corpo sinto a lava escorrer
Vejo o próprio fogo não há força pra deter
Me derreto tonta, toda pele vai arder
O meu peito em chamas solta a fera pra correr

(trecho de Pra fuder, do álbum A mulher do fim do mundo, de Elza Soares)

Tendo Elza Soares como trilha sonora de um processo que ainda não sei ao certo se foi de libertação ou transição (talvez um seja caminho para o outro), encaramos esse projeto que não poderia ter sido menos intenso. Cantarolado pela Mulher do Fim do Mundo, um semestre acadêmico que para todo estudante universitário é motivo de tensão, para nós trouxe plenitude e autoconhecimento.

“Intelectuais Negras: saberes transgressores, escritas de si e práticas educativas de mulheres negras” é uma disciplina que emerge em um ambiente acadêmico ainda sedento por perspectivas latinas, afro-brasileiras e femininas. Giovana Xavier é a intelectual que ministra o curso, na Universidade Federal do Rio de Janeiro. Nele, ela não só apresenta o trabalho de mulheres talentosas, porém constantemente invisibilizadas, mas também oferece espaço para que as obras delas sejam discutidas, estudadas e principalmente vivenciadas pelos alunos e alunas, que aos poucos vão se tornando um núcleo em que a sororidade e a cumplicidade são a chave para o sucesso da disciplina.

Uma das propostas do curso é justamente proporcionar aos alunos vivências através da obra e história de cada artista estudada. Dessa forma, cada grupo se encarregou de uma intelectual em especial. Nosso quinteto foi responsável por Rosana Paulino, artista plástica renomada que tem como foco em seu trabalho refletir o espaço ocupado pela população negra e, particularmente pela mulher negra na sociedade brasileira.  Através disso, ela constrói uma crítica às opressões e ao silenciamento por elas encarados.

Rosana Paulino

Rosana Paulino (Foto: O Globo)

Em sua obra « Assentamentos », por exemplo, ela trata do trauma que os negros escravizados tiveram ao enfrentar esse, como ela diz, « refazimento em um país e cultura totalmente estranhos e ainda tendo de lidar com a escravidão ». A costura, nesse sentido, foi essencial para passar essa ideia do trauma, já que, como as linhas não se fecham, esse refazimento nunca se dará por completo.

Inspirados na obra Bastidores, de 1997, nosso grupo propôs a vivência. São conjuntos de diversos bastidores que sevem de suporte para tecidos gravados com fotografias de mulheres sofredoras de violência doméstica. Lentamente, a artista borda sobre a boca, pescoço, garganta dessas mulheres aprisionadas no circulo vicioso de suas circunstâncias.

Nossa proposta, então, foi justamente desatar esses nós. Costuramos os olhos da Rihanna, que em 2009 foi espancada por Chris Brown; Costuramos a garganta de Claudia Silva Ferreira, assassinada pela polícia militar em 2014; Por fim, costuramos a boca de Elza Soares, vítima de violência doméstica cometida por Garrincha e uma série de outras violências por parte da mídia e sociedade pelo fato de ser mulher negra e conquistar a notoriedade.

#DesatandoNós

#DesatandoNós

Cada um, por sua vez, desatou um nó de sua vida, seja um silenciamento, uma experiência de racismo, machismo e dessa forma, literalmente tiramos o nó de nossas gargantas. Como a ideia era de ser um processo inclusivo, convidamos toda turma a participar e desatar seus nós, e pôr pra fora aquilo que lhes esmagava e já não lhes cabia mais. Vamos nesse texto, então, comentar um pouco sobre os nós que desatamos durante todo esse processo de redescobertas e, principalmente, de transgressão.

Gravura do artista Fernando Rosa - Ago kaj Reago - Detalhe - Ação e Reação. Litografia

Gravura do artista Fernando Rosa – Ago kaj Reago – Detalhe – Ação e Reação. Litografia

 

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Foi no meio desse espaço que eu, Bruna, tive a alegria de conhecer Paolla, Mel, Marília e Fernando, que se tornaram pessoas muito importantes nessa caminhada de descobertas que é a vida e que amenizaram a pressão que o meio acadêmico nos impõe desde sempre. Não digo que eles, assim como todas as outras pessoas maravilhosas com quem dividi essa experiência, contribuíram para uma desconstrução minha; pelo contrário, todo esse processo nada mais foi do que pura construção.

Embora seja mulher e tenha vivenciado inúmeras experiências de machismo, durante muito tempo eu permaneci camuflada aos privilégios que ser branca e acadêmica me proporcionam. Foi isso o que fez com que o meu primeiro contato com o feminismo se resumisse a apenas reivindicar pautas que diziam respeito às opressões que eu vivia, sem ter a preocupação de agregar outros debates a minha militância.

A interseccionalidade veio como um contraponto a esse individualismo que eu ainda vejo tão presente no movimento feminista e LGBT+, dos quais faço parte. O difícil é ver o quão estruturado é esse individualismo pela própria academia: as leituras feitas por estudantes das mais diversas áreas nada mais que refletem a visão de mundo de autores homens/cisgêneros/eurocentrados, e acaba que isso é absorvido e tomado por padrão absoluto. Sem contar no reflexo que isso tem na instrumentalização de um sistema de ensino lgbtfóbico-machista-racista que exclui os que não fazem parte da elite, além de reforçar os inúmeros casos de assédio sofrido por alunas em todas as esferas acadêmicas.

Participar das rodas de conversa e discussões propostas pelo curso foi um processo para transcender, quebrar padrões tão intrínsecos a nós que transforma pressão social em algo inerente à essência humana. Foi mexer nas feridas mais duras e entender o que foi enfrentar distúrbios alimentares durante grande parte da minha vida. E todo esse processo também foi de cura: ele me ajudou a pensar em tudo que até então me forjou ser humano, tudo o que me forjou mulher; e me fez descobrir que o reflexo que eu quero espelhar são todas as mulheres incríveis que passaram pela minha vida e deixaram sua marca em mim. Elas sim me tornaram mulher.

Vi que me entender intelectual era o antônimo de estar a serviço; e estar a serviço era justamente o que o patriarcado espera de mim e de todas nós; nesse sentido, não há revolução interna maior do que afrontá-lo e assumir a autonomia sobre nossas mentes e visões sobre nossos corpos e intelectualidades. Se amar em um mundo que prega a eterna insatisfação pessoal é a maior vitória que podemos conquistar enquanto mulheres e é o caminho até ela que eu pretendo percorrer a partir de agora.

Tomei a decisão de que não vou mais me render ao que o patriarcado espera de mim, não vou me limitar jamais! Decidi que a luta delas também é minha e que juntas somos mais fortes.

Ni una menos significa que nenhuma ficará para trás e cada dia que caminho junto delas é uma barreira a mais que quebro dentro de mim mesma e nesse mundo de padrão “top normativo”.

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Parte da turma de intelectuais de 2017.1

Parte da turma de intelectuais de 2017.1

 

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Aprender a enegrecer as minhas ideias. Aprender sobre a influência da cultura africana na cultura afro-brasileira. Aprender sobre intelectuais artistas e autoras negras. Aprender que eu sou uma intelectual negra. Sim, posso dizer que “aprender”, foi a palavra que permeou minha trajetória na disciplina Intelectuais Negras: saberes transgressores, escritas de si e práticas educativas de mulheres negras”.

No processo de construção do meu lugar no mundo como mulher negra, de reconhecimento da minha negritude, entre os sabores e dissabores que a sociedade nos impõe, a minha ânsia de conhecimento sobre feminismo negro se tornou cada vez mais urgente. A necessidade de fazer girar a roda do racismo, do patriarcalismo e do sexismo, me levou ao mundo acadêmico, no qual pesquiso raça e gênero. Nesse meio de disputa simbólica e objetiva, tenho possibilidade de enegrecer os pensamentos num ambiente dominado pela branquitude e pelo pensamento eurocêntrico. Assim, me contempla a fala de Conceição Evaristo, no dia em que recebeu a Medalha Pedro Ernesto, na Câmara Municipal do Rio de Janeiro: “Para as feministas, escrever é um ato político, para as mulheres negras, publicar é um ato político”. Então, eu, Paolla Moura, mulher, negra, jornalista e pesquisadora, faço das palavras e das minhas publicações, o meu ato político para nos tornar cada vez mais visíveis.

As vivências em sala de aula foram um espaço de libertação. Entre choros e abraços, reescrevemos nossa história pessoal e ancestral, afirmamos a força do coletivo e a importância da luta do movimento feminista negro. Aprendi com Giovana Xavier, em uma das nossas aulas, que o corpo negro é o nosso principal texto. Sendo assim, que bom poder compartilhá-lo com o mundo. Porque meu corpo negro está aqui para fazer a diferença, para quebrar padrões, para inspirar a meus irmãos/irmãs, para ser ponte de afetações libertadoras. Meu corpo negro é meu espaço de transgressão.

“Desatar os nós”. Quando me peguei dentro dessa proposta do nosso grupo, vi que não seria fácil desatar algum nó meu na sala de aula, só que contrariando toda a minha ansiedade, foi leve, foi um momento de muita troca, de transgressão e autoconhecimento. Libertei-me de concepções e afirmações que fazem parte do nosso racismo estrutural, que crescemos ouvindo e quando nos damos conta já os internalizamos, e sem perceber, aceitamos o cantinho da sala e de cabeça baixa. Tirei o nó da garganta e gritei pro mundo que o meu lugar de mulher preta é aonde eu quiser. Como diz Emicida, na letra de Mandume, “eles querem que alguém que vem de onde nós vem, seja mais humilde, baixe a cabeça, nunca revide, finja que esqueceu a coisa toda. Eu quero que eles se…”

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Meu nome é Marília Pereira, mulher, negra, nordestina, 23 anos e estudante de Letras – Português/Literaturas na UFRJ. Sempre me senti muito sozinha no espaço acadêmico e encontrar um lugar onde pude compartilhar minhas vivências, falar das dores de “Nós” na primeira pessoa foi um processo de cura.

Eu sempre digo que a disciplina “Intelectuais Negras: saberes transgressores, escritas de si e práticas educativas de mulheres negras” foi um divisor de águas na minha vida. O aprofundamento nos estudos de e sobre mulheres negras me fez despertar para muitas questões que antes eu naturalizava. Comecei a me reconhecer como mulher negra há pouco tempo, depois de anos tentando me embranquecer por imposição dos padrões sociais e, ter tido contato durante o curso com tantas intelectuais negras incríveis, em especial Rosana Paulino, e reconhecer as intelectuais negras do meu convívio, inclusive a mim como intelectual negra que sou, me fez transgredir.

O racismo destruiu minha autoestima e fez com que eu negasse minha própria imagem durante muito tempo. Foram quase 23 anos me desenhando com os cabelos esticados, olhos azuis ou verdes e não pintando o meu corpo, apenas o contornando com o lápis de cor marrom mais claro da caixa.

Foi no primeiro semestre de 2017, durante uma dinâmica de autorretrato proposta pela professora Giovana Xavier, inspirada pela obra da artista plástica Renata Felinto, que eu me desenhei mulher negra pela primeira vez. Em todos os encontros eu despertava para alguma questão, mas nesse dia eu tive o meu primeiro impacto.

Rosana Paulino abriu meus olhos através de seus Bastidores e seu posicionamento. Foi durante a vivência proposta por nosso grupo para a turma que eu senti as emoções mais fortes da minha vida.

Desatar os nós. Soltar a voz. Abrir os olhos. Dizer onde eu quero estar, saber onde eu posso chegar e não mais aceitar os lugares que me colocam. Nós, mulheres negras, resistimos o tempo todo. Resistimos quando superamos as estatísticas, quando sobrevivemos ao cotidiano machista e racista que nos cerca e quando reconhecemos o nosso direito de fazer as nossas escolhas. Nós podemos ser o que nós quisermos ser!

O maior ensinamento que levarei do convívio com todas as pessoas maravilhosas que fizeram parte da turma de Intelectuais Negras 2017.1 é pensar no coletivo, na luta preta. Eu, COM CERTEZA, não sou mais a mesma. Sou uma pessoa muito melhor e muito mais gentil comigo mesma, com a minha irmã preta e com o meu irmão preto. Se amar enquanto negro é um processo longo e de muito enfrentamento, mas perceber que eu não estou sozinha, apesar dos despertares impactantes, me confortou muito!

Por isso, aproveitando o espaço para continuar dando visibilidade às intelectuais negras e fortalecer a nossa luta, gostaria de dizer à mulher negra que está lendo este texto que ela pode ser tudo o que ela quiser ser. Não deixe que te podem! Não acredite que determinados lugares não são para você. Você merece estar onde você quer estar. Tenha sempre isso em mente! Você não está sozinha! “Eu sou porque nós somos!”. Você é linda, poderosa e capaz!

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Diego Machado, aluno da UFRJ (Foto: Pérola Gonçalves)

Diego Machado, aluno da UFRJ (Foto: Pérola Gonçalves)

Dedicamos nosso texto ao estudante Diego Machado, aluno da UFRJ e vítima de um crime com motivações racistas e LGBTfóbicas. Nas palavras da própria Elza, “mas mesmo assim ainda guardo o direito de algum antepassado da cor brigar sutilmente por respeito, brigar bravamente por respeito, brigar por justiça e por respeito”, e não nos esqueceremos e nem deixaremos esquecer “A Noite”.

Tiramos dos bastidores tudo o que é escondido, silenciado, apagado,  e decidimos não mais nos calar.

Tiramos dos bastidores tudo o que é escondido, silenciado, apagado, e decidimos não mais nos calar.

 

Brenda Mel Castro

Bruna Bauer

Fernando Rosa

Marília Pereira

Paolla Moura

(Universidade Federal do Rio de Janeiro)

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Maternidade. Ambiguidade; Alteridade; Diversidade: Liberdade


Duas mulheres correndo na praia (Deux femmes courant sur la plage) – Pablo Picasso, 1922

Este não é um libelo contra a maternidade.

Esta não é uma querela contra crianças.

Esta não é uma provocação ou indelicadeza com as amigas-mães – ou mães-anônimas.

 

Este é um panfleto pela liberdade de não sonhar em ser mãe.

 

Numa sociedade que nos ensina ou impõe a restrição desde meninas, deu muito trabalho andar com as próprias pernas. Teve muito silêncio ou palavra guardada antes de ter segurança de dizer a viva voz quase tudo (ou quase pouco) o que se pensa ou sente. Foi uma gestação – é também, mesmo que outra – todos esses anos até virar uma interlocutora algo legítima ou respeitável nos meus meios sociais.

 

E se eu quiser desfrutar a liberdade de só ser eu?

E se eu não fizer questão de ter alguém à minha semelhança?

 

Sinto enorme alegria de ver os olhos das amigas-mães brilharem com seus pequenos e pequenas. Brilham meus olhos também. Gosto de ver arte para crianças. Sou feliz quando me pedem pra acolher um sobrinho-de-coração.

 

Mas tenho pela maternidade a falta que me faz não conhecer a neve: deve ser maravilhoso, mas se eu não passar por isso na vida, vai ser lindo também.

 

Atualmente o relógio-biológico, de fato, me molesta bastante: temo que passem muitos anos e eu já não tenha vigor físico pra aprender capoeira. Ou pra fazer a peregrinação de Ladakh. Ou que a vida se me limite e eu não consiga ler os livros que venho guardando empoeirados na estante pra ler um dia. Mas confesso que, quando penso que os anos e a juventude escorrem pouco a pouco, fico mais triste com a possibilidade de não conhecer a Turquia do que de não gerar um ser.

 

Vejo ex-amores que são pais e penso que não queria ser mãe de nenhum daqueles filhos. Sonho com as horas no meu dia que sobram pra aprender rabeca ou ver um filme antigo. É um alívio saber que posso, vez em quando, sumir sem que ninguém se prejudique com isso.

 

Mas é também solitário o lugar de assumir isso pra si. E para os outros. Parece que alguém que ousa questionar esse ciclo da vida tão óbvio tem de estar integralmente resoluto. Com muitos argumentos. Com todos os argumentos. Com muita certeza. Com toda convicção.

 

E, afinal de contas, uma mulher que não almeja ser mãe tem um quê de egoísta.

Dizem.

 

Mas por quê eu tenho de ter certeza de tudo o que quero ou não?

Que sei eu do que serei, eu que não sei o que sou?

Ser o que penso? Mas penso ser tanta coisa!

 

 

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As sutilezas da cultura do estupro 


– E aí, gatinha? Tudo bem? O que está fazendo de bom?-Tudo bem. Estou em casa assistindo a um filme. E você?

-Quer companhia? Posso ir para sua casa agora.

-Não, obrigada. Estou bem sozinha.

-Não precisa ficar envergonhada. Posso te ver sem problemas.

-Não precisa. Quero ver o filme sozinha.

Uma hora depois…

-E aí? Já resolveu sua dúvida? Posso ir?

-Aff…
O diálogo hipotético guarda semelhanças com situações reais e revela dois lados da mesma moeda perversa do patriarcado: a falsa ideia de que o homem precisa ser um conquistador incansável, baseada, principalmente, na outra falsa ideia de que a mulher que diz “não” só o faz, porque foi ensinada a valorizar o próprio passe.

Essa dupla inseparável, a insistência real e a negação, suposta como joguete de resistência, torna ainda mais difíceis as relações, ao convencionarem papéis de gênero que desafiam uma questão extremamente simples: seja de forma gentil ou de forma mais enfática, “não” significa “não”.

Situação constrangedora me veio à cabeça, quando anos atrás um amigo (era o que eu achava) querido me convidou para uma casa noturna. Fui com mais duas pessoas e lá pelas tantas, o querido resolveu que era hora de “atacar”. Durante a conversa, na qual ele se assemelhava a um polvo, me distanciei sem mencionar os excessos, crendo que tal atitude seria uma estratégia gentil. Foi quando ele procurou a amiga que me acompanhava para dizer que eu estava fazendo cu doce. Hoje entendo com mais clareza que não se tratava puramente de imbecilidade da parte dele.

Aliás, repassando histórias vividas por mulheres (essas sim realmente) queridas, percebo que, com absurda frequência, o “não” delas é desrespeitado. Recentemente uma amiga conversava com o crush no whatsapp quando ele disparou um pouco fora de contexto “vou te mandar nudes”. “Não, não manda nada, por favor”. E lá se foi a possibilidade de diálogo. Ele não só insistiu como enviou a foto. Que tipo de homem te mostra o pau mesmo depois de você dizer que não quer ver? Em que momento ele deixa de perceber que isso também é uma forma de violência? Que tipo de autoestima (sei lá, né?) supõe que a varinha de condão dele abrirá as pernas do paraíso?

Caso ocorrido com as feminagentes num bar em frente à UERJ anos atrás: um homem visivelmente bêbado insistia em querer sentar conosco. Diante das negativas, passou a ficar de pé tomando conta da conversa e se intrometendo. Não, isso não é simpático, nem engraçado. Os amigos dele, menos bêbados, riam à distância. O riso afrouxou quando uma de nós foi até lá. “Ou vocês resolvem cuidar do amigo bêbado ou a coisa vai ficar ruim pra ele”. Funcionou.

De alguma forma, creio que esses excessos são cometidos num contexto de enaltecimento desses tais papéis de gênero. Vejam vocês as roupas de bebês. Não raras vezes, encontram-se roupinhas de princesas para meninas, bodys e camisetas com dizeres como “bonequinha”, “à procura do príncipe”. Nas roupas de meninos: “salva-gatinhas”, “solteiro sim, sozinho nunca”. Ficou assustad@? É isso mesmo. Nas roupas de bebês. Ainda usam fraldas e já estão sendo submetidos a esses papéis: o da moça recatada e o do macho caçador. Isso quando não resolvem ridicularizar o pai de menina, dizendo que agora ele vai pagar pelo que fez às filhas dos outros. Como assim? Estão rogando uma praga? Ou realmente acreditam que a mulher não pode exercer sua sexualidade com liberdade e prazer? Parece haver sempre a ideia de que liberdade e prazer estão associados ao homem; à mulher, castidade ou castigo.

Eu poderia falar dos números de violência cometidos pelo machismo nosso de cada dia, mas resolvi tratar do que não cabe nas estatísticas, dessa violência sutil, que vai sendo menosprezada, tratada como algo irrelevante. E essa combinação entre legitimar o papel de predador e desrespeitar os limites das mulheres também é outra forma de sedimentar a cultura do estupro.

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Gravidez – parte IV: Expectativas de uma grávida feminista


Minha segunda gravidez já tinha me ensinado a árdua lição de que a vida segue (ou não) além dos planejamentos. Uma gestação confirmada com um dia de atraso menstrual, cercada de todos os cuidados recomendados nessa época da vida e com um desfecho tão inimaginável. Descobri ali que não somos arquitetos de coisa alguma. São muitas as coisas que não cabem no método, nas escolhas, nas convicções.
À terceira gestação, coube a aceitação do imprevisível. Por não saber da gravidez, as primeiras semanas foram regadas a farra, muito álcool e rock na veia. Já estava me tornando figura habitual do Buffalo’s quando me certifiquei do resultado do teste, não sem uma tremenda dor na consciência. Virada a página da dor, resolvi ficar com a alegria que cada dia me reservava. Se pensei que poderia ocorrer o mesmo infortúnio? Só no dia da confirmação do teste de farmácia. Fora isso, cada dia tinha suas alegrias. No final, ficava o fato de nossa Nina Simone estar tão próxima.
Desde o início, eu desejei a acolhida de uma doula a meu lado e o parto normal humanizado. O primeiro desejo esbarrou em duas questões práticas: minha obstetra não se sentia confortável em trabalhar com uma doula e o meu salário da rede estadual passou a não ser pago ou, quando pago, parcelado em inúmeras vezes.
Ainda assim, contei algum tempo com a assistência da doula Quitéria Chagas Doula, que foi uma presença incrível no primeiro trimestre, mesmo que nunca tenhamos nos visto pessoalmente. Sou grata por cada recomendação, cada orientação, cada link enviado. Sou grata por me perguntar como iam as coisas num momento em que eu só tinha vontade de chorar.
Talvez algumas manas pensem: mas por que não brigou para ter uma doula consigo? Porque sinceramente acho que um profissional contrariado não pode trabalhar bem. Queria Nina Simone vindo ao mundo cercada de amor, não de disputa. As pelejas que a vida lhe reserva já serão muitas. Somos mulheres. Sabemos disso.
Quanto ao segundo desejo, quando perguntei à obstetra se ela fazia parto normal – sim, para quem não sabe, é bom perguntar isso na consulta – ela soltou um “até faço”. Esse “até” bateu fundo em mim. Ela completou a informação com a narrativa de dois partos normais difíceis que ela teria feito na semana. Rapidamente meu racional foi acionado: não cai nessa, está querendo te sugestionar.
Lancei-me à procura de um obstetra que trabalhasse com parto normal humanizado e que aceitasse bem a presença de doula. Consegui algumas indicações com amigos e outras em sites sobre humanização. Depois de longa pesquisa, eis os resultados: os que trabalhavam não eram cobertos pelo meu plano de saúde, os cobertos pelo plano podem ter sido recomendações feitas de coração, mas sem a observância dos filtros que determinei. Na segunda parte da pesquisa, consultei o plano de saúde para saber o percentual de partos normais dos profissionais que eu tinha listado. Qual não foi minha surpresa. A obstetra que vinha me acompanhando tinha 27% de ocorrências de parto normal. Achou pouco? Os outros profissionais tinham 3% ou 0%. Resolvi sossegar e continuar com ela, mesmo sem doula. Já não tinha grana para pagar mesmo.
A cada consulta, a obstetra perguntava minha opção de parto. Isso me irritava profundamente, afinal ela era uma profissional superorganizada. Certamente deveria haver essa observação em algum dos seus registros. Para completar, era uma profissional de poucas palavras, e eu adoro aula em consultório médico, sabe? Gosto quando o médico explica, desenha, demonstra. Era torturante estar com alguém que, quando podia, respondia apenas monossilabicamente as perguntas. Mas, é preciso reconhecer, ela sempre atendeu ou retornou prontamente as minhas ligações, independente do dia ou da hora.
Trinta e seis semanas. Assinei o termo de parto normal. À noite chorava até não poder mais. O que houve? Você não queria parto normal? Sim, eu queria. Mas os termos seriam outros. No documento que assinei sem qualquer conversa esclarecedora sobre ele, eu autorizava o uso de hormônio sintético para apressar as contrações, a ruptura manual da bolsa, a episiotomia. E eu só queria que a profissional me dissesse que nada daquilo é feito arbitrariamente, que primeiro se esgotam as possibilidades de agir do corpo da própria gestante, que os procedimentos todos só são realizados quando estritamente necessário. Adepta que sou do meio termo, defendo até o fim o direito de a mulher não admitir qualquer tipo de interferência no trabalho de parto, mas aceito que, diante de muitas dificuldades, o sofrimento possa ser abreviado. Pensando no termo assinado, chorei pensando que “meu corpo, minhas regras” não vale como lema se você é uma mulher grávida.
Li lindos depoimentos de pessoas queridas que optaram pelo parto domiciliar com parteira. Pelo meu histórico, pelo histórico de minhas irmãs, eu jamais vislumbraria isso. Não me perdoaria jamais se precisasse de UTI neonatal e tivesse optado por não tê-la ao alcance.
Trinta e oito semanas. A pressão ficou mais alta, as hemorroidas, comuns na gravidez, evoluíram para trombose. Nunca tive medo do escuro. Passei a dormir com algum feixe de luz visível. Minhas noites passaram a ser torturantes pela falta de ar constante e pela sensação de claustrofobia. Tinha medo de que essa dificuldade de respirar me acompanhasse no trabalho de parto. A obstetra recomendou a cesariana. Assinei o novo termo. Parto marcado para o dia 7 de março. Desta vez, não chorei.
A essa altura eu já tinha percebido mudança de atitude da obstetra que se tornou mais detalhista e comunicativa, mesmo antes da assinatura do segundo termo, o que me leva a crer que não foi isso que influiu no seu comportamento. Minha teoria de botequim é a de que ela adora os bebês e atura as gestantes para poder chegar até eles, tornando-se mais receptiva conforme o parto se aproxima.
Nina Simone veio à luz de forma linda e pude perceber que uma cesariana também pode ser um parto humanizado. Meu ginecologista que me acompanha há anos e anos fazia parte da equipe médica e chegou a colocar Nina Simone, a cantora, para tocar enquanto eu recebia a anestesia. A equipe interagiu comigo todo o tempo e a obstetra explicava detalhadamente cada procedimento. Havia um pouco de mecônio no líquido amniótico, o que configura início de sofrimento fetal. O amor da minha vida esteve do meu lado no momento mais emocionante em que fomos apresentados à nossa pequena, que nasceu forte, saudável, gritando a plenos pulmões que chegou ao mundo para cantar canções de acordar.

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Gravidez – parte III: terceira gestação: as descobertas


Parte III – terceira gestação: as descob
Um mundo de possibilidades se abriu suplantando a memória anterior que associava gravidez à doença. Minha disposição tinha aumentado sensivelmente no primeiro trimestre. Praticamente não enjoei, tendo apenas que abrir mão do meu amigo café.
No segundo trimestre, parei de comer frango. O odor me deixava nauseada. Conseguia andar por longas distâncias sem me queixar, como, por exemplo, naquelas feiras intermináveis de bebê & gestante.
Tinha verdadeiro horror às decorações aristocráticas, com suas coroas e seus rótulos de princesa, seu rosa abundante, sua fofurização da menina. A essa altura, eu já sabia que era uma menina. E toda vez que alguém dizia que minha princesa estava por vir, eu me contorcia. Dizia para mim mesma: está a caminho minha aventureira, minha desbravadora, minha pesquisadora. Nunca tive coragem de dizer assim para as pessoas, porque sempre pensei no risco de ser mal interpretada, o que, em grande parte, envolvia pessoas muito queridas.
O terceiro trimestre foi barra pesada, mais especificamente a partir da metade do sétimo mês. Minha pressão, já alta antes da gravidez e que tinha estabilizado em medições normais durante os meses anteriores, começou a subir. Ganhei ainda mais peso que antes e tive a impressão de que isso se dava de forma muito rápida. Estava muito inchada e só conseguia usar o mesmo par de sandálias para tudo. Não conseguia manter o foco no trabalho. Ficar sentada por muitas horas me gerava um desconforto imenso. Mais que desconforto: cada vez que eu me levantava era dor mesmo o que eu sentia no pé da barriga. Andar se tornava mais difícil a cada dia. Às vezes eu chorava de cansaço. Dei para ter certa espécie de claustrofobia, sensação de não conseguir respirar com o quarto fechado. Mas não havia outra alternativa para dormir, pois tenho gatos e, se a porta se mantém aberta, tudo vira um imenso parque de diversões e dormir se torna impossível. Acordei várias vezes agoniada com essa sensação de asfixia. Tinha uma vontade imensa de chorar e não o fazia por receio de ficar com as narinas entupidas e piorar minha respiração. A ansiedade tomava conta de mim. Comecei a ouvir diariamente o mantra do Buda da Medicina. Na reta final, comecei a ler A sabedoria da transformação, de Monja Coen. Meu companheiro se mostrou permanentemente solidário e tentava me acalentar em todos os tipos de desconforto.

(Continua…)

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Gravidez – parte II: terceira gestação: a descoberta 


(Continuação)Mas por que raios eu desejava tanto ter um filho ou uma filha? Enxergo-me como alguém de afeto transbordante e sempre pensei que maternar me reservaria um percurso feliz.

Essa terceira experiência foi diferente de tudo que a precedeu desde o princípio. Das outras vezes, eu constatava a gravidez na primeira semana de atraso. Agora não foi bem assim que as coisas sucederam. Tirei uns dez dias de férias e fui fazer uma massagem divina com Ranuzya Cugnier (Rany), a moça de aura boa e mãos de fada. Ao final dessa mistura de massoterapia e reiki, ela me perguntou pela minha última menstruação, pois teria sentido formato e consistência diferentes na minha barriga, além de uma energia muito forte vinda do ventre. Eu não tinha como falar propriamente em atraso, uma vez que meus ciclos não são nada regulares. Comprei um teste de farmácia e, na manhã seguinte, lá estava: mais de três semanas de concepção.

Chorei copiosamente pensando no passado e no futuro. No retrovisor, via as experiências anteriores e não desejava revisitar essa dor nem permitir essa mácula de sofrimento com meu atual companheiro. No para-brisa, sabia que teria de abrir mão de um estilo de vida regado a liberdade e que dali por diante uma nova prioridade se instalaria em todas as direções.

(Continua…)

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Gravidez – parte I: a origem e as perdas


De origem humilde, nasci num lugar onde jovens engravidavam antes dos 16, sem orientação nem planejamento. Às moças, restava a evasão escolar; aos rapazes, muito pouca, quase nenhuma responsabilidade. Prendam suas cabras… Nesse universo, eu encarava a gestação como algo próprio do reino animal e não via qualquer diferença entre gerar um bebê humano ou um filhote de girafa.
Lembro-me de uma amiga querida que, após perda gestacional, engravidou de novo, me contou e eu não a felicitei. Eu tinha uns 15 anos na época. Desculpe, viu, doce amiga? Era assim mesmo que eu enxergava a vida naquela época: achava que havia mais mérito em prosseguir com os estudos, o que seria uma tomada de decisão, do que em engravidar, que eu encarava praticamente como mera falta de uso de métodos anticoncepcionais. Amorosamente, ela chamou a atenção para minha aparente indiferença e isso nunca saiu da minha cabeça.

Muitos anos depois, passei por duas experiências gestacionais sofridas. Ué? Parecia tão fácil.

Minha segunda gestação me reservou agruras das mais diversas, desde a sensação de estar permanentemente doente até a morte do meu bebê prematuro e especial aos 20 minutos de vida. Deu-se ali o real encontro com o que significava gerar uma vida e o paradoxo de saber que dar à luz seria, naquela circunstância, dar à morte.

Desisti da ideia de gerar um filho. No meu coração, sempre coube gente de toda forma, sem laço sanguíneo que nos defina.

    (Continua…)

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Novo 8 de Março – LADO A


Feminagem_Greve Internacional de Mulheres

Os discos de vinil ou long-plays, mídia para reprodução de música preponderante na segunda metade do século XX, possuem duas faces: o lado A e o lado B. Embora não houvesse regra escrita para isso, o costume cristalizou que o lado A dos discos normalmente trazia as faixas mais populares, muito executadas na rádio, e o lado B trazia os hits menos óbvios, as canções mais experimentais.

Há um ano, contrariando a norma geral, lancei o meu long-play – ou, mais modestamente dizendo, meu compacto simples (aquele disquinho pequenininho, que tocava só uns 4 minutos de cada lado) – feminista a partir de seu lado B: me concentrei nos desafios e dificuldades enfrentados pelas mulheres na busca de uma igualdade de gênero, os quais embasam essa luta que celebramos – e para que tomamos fôlego – a cada 8 de Março.

(Leia também o texto aqui: Novo 8 de Março – LADO B)

Desta vez, sem querer fingir que a peleja está ganha ou, menos ainda, sem olhar pelas lentes da ingenuidade, achei por bem estrear o lado A dessa obra fonográfica: vamos cantar e dançar os avanços observados nos anos recentes com relação à mobilização pelos direitos das mulheres?

A luta feminista não é nova e nem está tão próxima a alvorada que assistirá a libertação de todas. No entanto, temos de reconhecer, com alegria, que dentre tantas fissuras em nosso corpo social – oligárquico, racista, colonialista –, há muito tempo não assistíamos a uma mobilização de mulheres tão pulsante como a que temos, no Brasil, desde aproximadamente, 2015. Chamaram-na Primavera das Mulheres, expressão que cai bem tanto pela estação do ano em que começou a acontecer – cerca de setembro –, como pelo sentido de reflorescimento que ostenta.

A Primavera das Mulheres faz referência a uma série de articulações – independentes, mas, de alguma maneira, relacionadas – que lançaram luz sobre uma série de violências e de subtrações de direitos que toleramos neste Brasil, o 5° país a mais matar mulheres no mundo e onde ocorre um estupro a cada 11 minutos.

Feminagem_Marcha das Margaridas.jpg

Um dos primeiros dessa série de atos organizados por e para o direito das mulheres foi a campanha digital #primeiroassedio, promovida pela organização Think Olga. Ela foi motivada pela tempestade de comentários machistas e pedófilos nas redes sociais destinados a uma competidora de 12 anos na  edição brasileira do Masterchef infantil, programa televisivo em que crianças disputam o título de melhor cozinheiro/a. Para chamar a atenção sobre esse comportamento corriqueiro, o grupo feminista pediu que as mulheres brasileiras contassem seu primeiro caso de assédio sexual, marcando-o por meio da hashtag #primeiroassedio. As cerca de 80.000 mensagens transmitidas em menos de uma semana revelaram que a média de idade do primeiro abuso era de 9 a 10 anos de idade.

Em outubro de 2015 milhares de mulheres saíram às ruas para protestar contra o projeto de Lei 5069/2013, de autoria do ex-presidente da Câmara – atualmente preso – Eduardo Cunha. A proposta restringiria o atendimento a mulheres vítimas de violência sexual e o acesso delas ao aborto legal, ao exigir boletim de ocorrência e exame de corpo de delito, bem como retirar das instituições médicas a obrigação de realizar procedimentos – inclusive fornecer medicamentos como a pílula do dia seguinte e o coquetel anti-DSTs. Isso representaria não apenas uma criminalização da vítima mesma de violência sexual como a deslegitimação da voz das mulheres como a única prova necessária para deflagrar o atendimento médico.

Feminagem_Marcha Nacional das Mulheres Negras.jpg

No mesmo período sobrevieram mobilizações de importantes grupos no escopo da representação feminina: as mulheres campesinas e as mulheres negras. A Marcha das Margaridas, a maior mobilização de mulheres da América Latina, que reúne trabalhadoras rurais, extrativistas, indígenas, quilombolas, marchou em Brasília – em número de 70.000 mulheres – por desenvolvimento sustentável com democracia, justiça, autonomia, igualdade e liberdade. Também na capital do país, a Marcha Nacional das Mulheres Negras levou mais de 50.000 mulheres às ruas contra o machismo e o racismo, sendo certo que são elas as mais atingidas pela violência sexual e obstetrícia, pelo risco de morte e pela precarização das relações de trabalho no Brasil.

Outro movimento que não teve início no Brasil, mas que lhe gera impactos na medida da possibilidade de uma articulação latino-americana foi #niunamenos. Ni Una Menos é um grito coletivo contra a violência machista, que surgiu na Argentina em resposta a necessidade de dar basta ao feminicídio – a cada 30 horas assassinam uma mulher apenas por ser mulher naquele país. A convocatória, que partiu da sociedade civil em seguida a feminicídios brutais, contagiou outros países da América Latina, como o Brasil, em mobilizações similares.

Feminagem_Ni Una Menos

É por isso que 8 de Março é data de luta, como a faixa do lado B do disco, que tocou ano passado, bem alertou. Mas também é momento de cantar e dançar este hit entre todas – mulheres negras, mulheres da periferia, mulheres campesinas, mulheres operárias, mulheres lésbicas, mulheres trans, mulheres mães, mulheres que abortam – as pequenas conquistas e as motivações para a derrocada de uma sociedade patriarcal, racista e classista. “O patriarcado tem data para terminar: 2030, que é o prazo que queremos ver todas as mulheres ocupando todos os espaços”, foi o que afirmou Nadine Gassman, representante da ONU Mulheres no Brasil, que tem chefiado campanhas pelo fim da violência contra as mulheres em toda a América Latina.

Para tanto, neste 8 de Março as mulheres vão parar: a Greve Internacional das Mulheres conclama todas – somos metade da população, estamos em todos os lugares do mundo – para exigirmos os mesmos direitos da outra metade: se nossas vidas não importam, que produzam sem nós.

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CONVOCAÇÃO PARA A GREVE INTERNACIONAL DE MULHERES NO BRASIL – 8 DE MARÇO

Neste 08 de março, a terra treme. As mulheres do mundo nos unimos e organizamos uma medida de força e um grito comum: Greve Internacional de Mulheres.

Nós paramos. Fazemos greve, nos organizamos e nos encontramos entre nós. Colocamos em prática o mundo no qual queremos viver.

#NósParamos

Paramos para denunciar:

Que o capital explora nossas economias informais, precárias e intermitentes.

Que os Estados nacionais e o mercado nos exploram quando nos endividam.

Que os Estados criminalizam nossos movimentos migratórios.

Que recebemos menos que os homens e que a diferença salarial chega, em média, a 26% na América Latina.

Que não é reconhecido que as tarefas domésticas e de cuidado são trabalhos não remunerados e adicionam três horas a nossas jornadas laborais.

Que estas violências econômicas aumentam nossa vulnerabilidade diante da violência machista, cujo extremo mais brutal são os feminicídios.

Paramos para reivindicar o direito ao aborto livre e para que não se obrigue nenhuma menina a enfrentar a maternidade.

Paramos para visibilizar o fato de que, enquanto tarefas de cuidado não sejam uma responsabilidade de toda a sociedade, nos vemos obrigadas a reproduzir a exploração classista e colonial entre mulheres. Para ir ao trabalho, dependemos de outras mulheres. Para migrar, dependemos de outras mulheres.

Paramos para valorizar o trabalho invisível que fazemos, que constrói redes de apoio e estratégias vitais em contextos difíceis e de crise.

#NãoEstamosTodas

Paramos porque estão ausentes as vítimas de feminicídio, vozes apagadas violentamente ao ritmo assustador de treze (13) por dia só no Brasil.

Estão ausentes lésbicas e travestis assassinadas por crimes de ódio.

Estão ausentes as presas políticas, as perseguidas e as assassinadas em nosso território latino-americano para defender a terra e seus recursos.

Estão ausentes as mulheres presas devido a delitos menores que criminalizam as formas de sobrevivência, enquanto os crimes corporativos e o tráfico de drogas permanecem impunes porque beneficiam o capital.

Estão ausentes as mortas e as presas por abortos inseguros.

Diante de lares que se tornam um verdadeiro inferno, nós nos organizamos para nos defendermos e cuidarmos umas das outras.

Diante do crime machista e da pedagogia da crueldade, diante da tentativa dos meios de comunicação de nos vitimizar e de nos aterrorizar, fazemos do luto individual um consolo coletivo e da raiva, uma luta compartilhada. Contra a crueldade, mais feminismo.

#NósNosOrganizamos

Nós usamos a estratégia da greve porque nossas demandas são urgentes. Fazemos da greve de mulheres uma medida ampla e atualizada, capaz de abrigar empregadas e desempregadas, a assalariadas e as que cobram subsídios, a autônomas e estudantes, porque todas somos trabalhadoras. Nós paramos.

Nós nos organizamos contra o confinamento doméstico, contra a maternidade compulsória e contra a competição entre as mulheres, práticas impulsionadas pelo mercado e pelo modelo de família patriarcal.

Nós nos organizamos em todas as parte: nas casas, nas ruas, no trabalho, nas escolas, nas feiras, nos bairros. A força do nosso movimento está nos laços que criamos entre nós.

Nós nos organizamos para mudar tudo isso.

#InternacionalFeminista

Nós tecemos um novo internacionalismo. A partir das situações concretas em que estamos, nós interpretamos a conjuntura.

Vemos que, diante do avanço neo-conservador na região e no mundo, o movimento das mulheres emerge como potência de alternativa.

Que a nova “caça às bruxas”, que agora persegue o que nomeia como “ideologia de gênero”, tenta justamente combater e neutralizar nossa força e quebrar nossa vontade.

Diante das múltiplas desapropriações, das expropriações e das guerras contemporâneas que têm a terra e os corpos das mulheres como territórios favoritos de conquista, nós nos incorporamos política e espiritualmente.

#ODesejoNosMove

Porque #VivasELivresNosQueremos, nos arriscamos em alianças incomuns.

Porque nos apropriamos do tempo e construímos juntas a disponibilidade. Fazemos da nossa reunião um alívio e uma conversa entre aliadas; das assembleias, manifestações; das manifestações, uma festa; e da festa, um futuro em comum.

Porque #EstamosJuntas, este 8 de março é o primeiro dia de nossa nova vida.

Porque #ODesejoNosMove, 2017 é o momento da nossa revolução.

#NemUmaAMenos

#VivaNosQueremos

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Algumas referências:

http://thinkolga.com/

http://niunamenos.com.ar/

http://www.8mbrasil.com

http://www.onumulheres.org.br/

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