Em chinês, “Xiao”, anteposto a um sobrenome, significa “jovem” (As boas mulheres da China. Xinran. 2002)

Ato de 8 de março de 2018, Rio de Janeiro (Fonte: Carolina Pildain Comunicación Integral)
Mais que a dor física, ficou-me dessa primeira entrega uma sensação de medo e secreta humilhação; aquele gozo, que ele tirava de mim, era tão só dele, tão separado de mim, diminuía-me tanto! Eu não ressentia nada do misterioso prazer cuja aproximação o fizera arquejar como se sofresse, e depois o deixara sonolento e quieto, atirado na areia, numa espécie de inconsciência feliz (…)
Eu estava lúcida, lúcida e magoada, e extraordinariamente triste e medrosa. Queria que ele me consolasse, me abraçasse, me compensasse de tudo. Porém Isaac, na sua sonolência, deixava-me estar sozinha, e parecia que minha função terminara ali – pelo menos até que o seu desejo renascesse.
(As Três Marias. Rachel de Queiroz. 1939. p.134)
É madrugada do dia 7 para o 8 de março e eu me coloco a escrever este texto, logo após pensar em algo a enviar para as mulheres que, até então, têm sido minha fonte de energia para resistir às circunstâncias. No meio de um emaranhado de pensamentos e de palavras soltas que surgem na minha mente enquanto reflito sobre minha trajetória de mulher até esses meus recém-completos 20 anos, duas palavras piscam em minha cabeça e são completamente capazes de resumir esse processo: sororidade e empatia.
Mas, antes de eu chegar ao que seriam minhas resoluções de jovem adulta ou de idosa adolescente, eu preciso falar sobre transição. Essa palavra tem um sentido tão imenso que, dentro da minha escassez de ideias para explicá-la, darei o meu melhor para ter êxito.
Transição é algo intrínseco ao “ser mulher”
Eu sempre me considerei muito precoce, dona de mim, conhecedora do mundo e cada vez mais o tempo passa e eu tenho certeza de que sei menos. Isso é ser mulher na sociedade em que vivemos. É estar sempre cercada pelos mais diversos aparatos de segurança que montamos entorno de nós mesmas, para que nosso ar de seriedade nos defenda de termos nossos corpos e intimidades invadidos por seres que nos veem como objetos a serviço sexual.
Posso dizer que meus anos escolares forneceram uma boa base para eu sentir o que me aguardava mais à frente. Os olhares de homens mais velhos desde o início da puberdade, que em um primeiro momento não entendemos, mas que, depois, nos causam insegurança e fazem com que os conselhos mais repletos de boas intenções (e frutos de experiências já vividas) das mulheres da família comecem a fazer sentido. Também é nessa época que professores começam com seus comentários machistas, tanto sobre alunas, quanto sobre outras professoras, sobre os quais só hoje eu tenho a capacidade de discernir.
Mas aí chega a Universidade. Esse espaço que acreditamos ser o sinônimo da liberdade e de tudo de bom que a vida tem a nos oferecer. Em parte, isso é verdade. Em parte, não: afinal, somos mulheres. E aí fica mais difícil, já que o assédio toma novas formas e sutilezas, até então desconhecidas. Eu, mera graduanda, ao sofrer assédio, não sei se me sentiria capaz de abrir um processo administrativo contra aquele que é o professor mais querido do curso, com doutorado internacional, e correr o risco de ter minha carreira manchada por ele e por seus colegas de profissão. Além disso, quem seria eu para achar que estou no direito de destruir a vida de alguém por mera paquera que “só foi uma gentileza”. Eu deveria estar honrada por um homem tão interessante olhar para mim, me achar “diferente” das outras e tão madura para a minha idade, e deixar de bancar a louca (ALERTA 1: essa é a tática mais usada de todas) (ALERTA 2: Se esse é o seu caso, entre em contato com o Núcleo de mulheres do seu curso ou com alguma mulher em que confie. Assédio é crime).

DADOS: INSTITUTO AVON E DATA POPULAR (FOTO: REVISTA GALILEU / FEU) (Agressão moral, assédio sexual, coerção, desqualificação intelectual e violência sexual são os tipos de violência mais comuns sofridos por mulheres na Universidade. Leia mais sobre em https://revistagalileu.globo.com/Sociedade/noticia/2016/02/rompendo-o-silencio-vitimas-de-violencia-nas-universidades-brasileiras-contam-suas-experiencias.html)
O paradoxo é que também foi nesse espaço em que tive a honra de ser abraçada por mulheres, que compartilharam comigo suas inseguranças e que me fizeram perceber que a competitividade que desde cedo plantam em nós nada mais é do que estratégia do patriarcado para que não percebamos que, juntas, somos mais fortes.
É aí que começo a entender a essência da empatia e inicio o exercício de uma sororidade sincera.
Além de formação acadêmica, a graduação também vira uma espécie de intensivão da vida. Tudo aquilo com que antes eu não tive contato eu começo a enxergar; e, então, preciso decidir se escolherei me impor ou me estabelecer como omissa frente a essas problemáticas. Foi nesse espaço que aprendi sobre privilégio branco, sobre transfeminismo e onde, pela primeira vez na vida, vi mulheres negras falando em primeira pessoa (obrigada, Giovana Xavier).
Esse afeto que aprendi a construir veio das mais diversas e inesperadas fontes. Uma das (poucas) resoluções certas que tenho até aqui é da importância de conversar com outras mulheres, de ouvir seus medos, suas histórias de luta e identificar nelas as minhas próprias inseguranças e medos, para que, juntas, possamos traçar estratégias de resistência. Também foi de extrema importância ouvir de diferentes mulheres as opressões que as atacam, já que vivemos em um país fundamentalmente racista, onde muitas ainda lidam com a soma de sexualização do corpo negro à misoginia estrutural – isso, sem falar em lesbo-trans-bi-fobias.
Outra resolução de coisas boas que agreguei no vigésimo 8 de março foi um hábito que tem me ajudado imensamente: me engajar em leituras cuja história seja narrada por personagens femininas. Nós precisamos de heroínas, de mulheres com as mesmas fraquezas que nós, que escrevem e nos fazem lê-las de dentro para fora.
Um dos últimos livros que li contava sobre a realidade de mulheres chinesas durante a Revolução Cultural e as opressões que sofriam, tanto no âmbito doméstico, quanto por parte do Estado. Foi assustador perceber que as histórias contadas por chinesas que viveram suas adolescências e vidas adultas entre 1950 e meados de 1970 poderiam, perfeitamente, se encaixar na realidade de mulheres brasileiras de 2018.
Em “As boas mulheres da China”, a primeira história narrada é a de Hongxue, uma adolescente que, desde a infância, é abusada por seu pai e que encontrou no hospital um refúgio para essas agressões. Desde então, ela fazia de tudo para ter seu quadro agravado e prolongar sua estadia no leito. Mas, o ponto principal da história é o afeto.
Um dia, deitada com seus olhos fechados, Hongxue sente
como se um par de mãos minúsculas me acariciasse suavemente. Eu me senti muito grata àquele par de mãozinhas e quis saber de quem eram. Abri os olhos e vi:
Era uma mosca
Essa foi a única sensação de carinho que ela recebeu em sua curta vida e, mesmo assim, a importância desses segundos foram cruciais para ela. Fico pensando o que teria se tornado Hongxue se ela tivesse tido o privilégio que eu tenho de viver em um círculo de afeto de mulheres em que confio e que tornam mais leve a caminhada até a plenitude.
Enquanto ela e as outras mulheres tinham suas histórias contadas no livro, eu conseguia sentir cada dor, arrepio, suspiro de alívio. Eu as lia, mas, ao mesmo tempo, era como se eu me visse nessas histórias contadas por elas, ou visse mulheres próximas que me contaram algo parecido. Isso é empatia. O carinho que senti por Hongxue, apesar das décadas que nos separam (e diante das semelhanças que nos unem), é sororidade.
Chegando perto deste 8 de março, li muito que essa data e a luta que temos travado até então fazem parte de uma revolução sexual. Mas eu vejo mais como uma revolução de corpo: estamos revendo a forma como nos enxergamos e o significado que atrelamos às nossas curvas, cores, sexualidades e, também, ao nosso papel na sociedade. É uma consciência que estamos adquirindo e que vejo como resultado de um cansaço coletivo desse papel de subalternidade, de serviço e de humilhação ao qual somos sujeitadas. Trata-se, portanto, de uma revolução por autonomia, sobre nossos corpos e sobre nós mesmas.
Pra esse 8M, eu só desejo que sejamos nossas, nossas, e de mais ninguém. Abrace uma mulher, converse com ela, não tenha receio de se expor a ela. Encontre nela a fortaleza que você precisa; será recíproco. Vejamos nossas mães e, encarando diferenças, distâncias (terrestres ou espirituais), sintamos por elas a mesma empatia que gostamos que sintam por nós, pois é através delas que tudo começa (independente de como seja).
É assim que eu espero continuar me tornando mulher: me (re)descobrindo, descontruindo e construindo, em um processo que levará uma vida inteira e que será uma longa caminhada (em que pelo menos a boa companhia estará garantida).
Tour Pelo Meu Rosto | Papo DePretas por Gabi Oliveira

Convidada: Bruna Bauer
Mulher latina e feminista em busca da interseccionalidade. Faço parte do Núcleo de Mulheres Maria Beatriz Nascimento e paradoxalmente estudo Segurança no Fundão. Pesquiso feminismo(s) na tentativa de dar voz às mulheres do sul global. Meu sonho de criança era ser poliglota e o mantenho até hoje, mas por enquanto me contento em ser super poliglota em cumprimentos aleatórios e saber escrever “feminismo” em umas oito línguas. Amo Maria Bethânia e Alcione.
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