Era uma coisa tão fácil*


Coração partido

Imagem extraída do site Pintura que Fala.

Na primeira vez em que aquilo aconteceu, ela estava só. A notícia veio fria, pesada. O coração não bate mais. Um arrepio lhe percorreu todo o corpo. Em casa, exausta das lágrimas, mal teve tempo de ir ao banheiro. Jatos lhe saíam do estômago.

Levava uma vida normal. Trabalhava, estudava, flanava. Culpou-se por esforços excessivos que julgou ter feito. Buscava pistas que não a eximissem da responsabilidade. Cobrou-se, puniu-se. Sentiu vergonha. Era uma coisa tão fácil.

Agora aquele não mais ser jazia dentro dela. Confusão dos sentidos. Queria acordar disso tudo; na verdade, nem dormia. Os médicos disseram para levar uma vida normal. O corpo reagiria. Como interromper a mão que afaga a barriga oca? Sem dores físicas, restava esperar. Não havia esperança. Alma em frangalhos.

Foi assistida na rede pública. Ficou no andar das mulheres que viviam em risco. Risco de morrer, risco de perder. Dentro dela, o ser amado inerte. O remédio e as dores que não havia sentido. Nada. Nova dose. Gritava abafado e via escuridão, se contorcia. Pariu, assim, seu primeiro filho. Natimorto. Sem forças para ver, acha que é menina. Ana.

Na segunda vez em que aquilo aconteceu, a notícia veio aos poucos. Não levava uma vida normal. Licença médica, pressão alta, risco. Percebeu algo errado e perguntou. Mãe mais ansiosa. Espera aí, já vou dizer. Voltou com o diagnóstico: hidrocefalia. Agora seria mãe de uma pessoa especial. Buscava pistas que não a eximissem da responsabilidade. Cobrou-se, puniu-se. Sentiu vergonha. Era uma coisa tão fácil.

Vida e válvula. Possibilidades. O médico disse que não. Apontou três caminhos, todos dolorosos. Morte no útero, no parto ou vida breve e vegetativa. Escolheu o nome assistindo a um jogo de futebol. Não se recorda qual. Ia falando o nome dos jogadores e sempre que o pronunciava a barriga mexia. Foi ele que escolheu. Rafael.

Pariu com dor. Muita dor. A dor de saber que não dava à luz uma criança, mas que a dava às trevas. Não o segurou nos braços. Pensou que viveria mais se fosse levado rápido à UTI. Foram apenas 20 minutos. Vida dentro, fora a morte. No interior, um vazio infinito.

* Dedico esse texto e toda a minha solidariedade à funcionária do banco Itaú de Tocantins, que abortou dentro da agência e foi impedida de deixar o posto de trabalho, por três horas, até que fechasse a tesouraria. Nesse período, teve de guardar o feto em saco plástico.

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2 opiniões sobre “Era uma coisa tão fácil*

  1. Fortíssimo.
    Parabéns, amiga 😉

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